Memórias da Maria Castanha
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Memórias da Maria Castanha

Esta obra intitulada Memórias da Maria Castanha completa a trilogia A castanha saberes e sabores (2001) e Castanea uma dádiva dos deuses (2005, revista em 2006). O título do livro retrata a “castanha”, fruto do castanheiro, como um ser feminino personificado, pois acrescenta-lhe o nome de “Maria” (Maria Castanha) e, além disso, a junção de “memórias” que ora sugerem recordações, ora ensinamentos pela sua vertente didática. Escreveu o prefaciador, A. M. Pires Cabral: “Estas memórias são uma espécie de vade-mécum da relação do povo com a castanha. Ensinam muito; mas, mesmo quando não ensinam, fazem recordar – e qualquer das coisas é bem-vinda” (p. 11). Sendo “Maria” um nome tão difundido por todo o mundo e de forte conotação religiosa, associado à castanha, enobrece o fruto que era considerado uma dádiva do castanheiro para alimentar os mais pobres, sobretudo durante o inverno; mas, por outro lado, o nome “Maria” também está enraizado no povo e até em alguns provérbios – caso de maria-vai-com-as-outras. O facto de o autor associar “memórias “ao fruto permite inferir que há uma raiz pensante a acionar um vaivém entre a castanha e o autor, dinamismo que se traduz nas tais memórias da “maria” que provêm, essencialmente, do povo e de um longo trabalho de investigação.

No dizer do autor, a escrita desta obra tornou-se penosa e pesada, pois, para além do tempo investido, do desgaste físico e psicológico e dos gastos financeiros, houve ainda muita frustração e até desilusão durante a recolha e seleção do material: “Pareceu-me uma tarefa rápida e simples, o que se veio a revelar complexo e muito, muito trabalhoso, com milhares de quilómetros engolidos, ao frio, ao calor, à sede e com estômago zangado” (p. 14). Depois de definir o método de investigação, o autor teve de identificar os santuários da castanha, percorrer todo o país, contactar com os municípios, descobrir as pessoas mais idosas (que naturalmente saberiam mais sobre castanhícola), registar os dados, sob forma escrita e conversacional, enfim, confessa o autor, “um caminhar por montes e vales (…). O trabalho duro só chegou a bom termo, porque sentia a voz da memória dos nossos antepassados e dos muitos amigos de hoje a incitarem-me a continuar” (p. 18).

Trata-se de um livro de memórias sobre a castanha, diria antes um memorial, pela quantidade e qualidade de memórias requisitadas e reativadas em seu nome; estamos perante um registo coletivo de um povo, ou melhor, de um país que, graças ao gosto do autor pela preservação da natureza e ao apego à terra-mãe, se entregou a tão árdua tarefa. Jorge Lage foi, sem dúvida, um lutador que teve a lucidez de salvar árvores (os castanheiros) que estavam a morrer de pé, sem que os homens as olhassem… Conseguiu mudar mentalidades e conquistar adeptos para a reflorestação da árvore e do investimento na qualidade do próprio fruto, hoje, com valor significativo e símbolo da região transmontana. Escreve o autor: “as voltas que o mundo dá!… Há 40 anos arrancavam-se os castanheiros para se plantarem vinhas e hoje (2011) arrancam-se as vinhas para darem lugar aos soutos” (p. 210).

É uma obra com cariz didático, embora construída numa base popular, pois os intervenientes são, sobretudo, idosos e pessoas muito ligadas ao labor da terra. A estrutura formal do livro prima por uma arrumação dos títulos que, sendo muito objetivos, conduzem muito bem o leitor. De salientar que há muitos termos típicos, eruditos e desconhecidos ligados à castanha – caso de garepa, castanhas chochas ou às gemelgas (p.17), mas a explicação vocabular inserida numa espécie de dicionário, disposto alfabeticamente, devolve saber ao leitor. Também os provérbios, a castanha na Literatura, os jogos e brinquedos, outras memórias da castanha são títulos que nos remetem para um saber muito diversificado sobre este fruto que, hoje, faz parte de ricos manjares. Para além disso, as festas, os magustos e as feiras são igualmente momentos de divulgação e degustação da castanha e todos estes eventos estão elencados na mapeação do país, incluindo as ilhas (p. 240-243). As curiosidades que estas páginas nos mostram são surpreendentes: “As mulheres em idade de procriarem, em Curral das Freiras, Câmara de Lobos, só comiam uma das castanhas gémeas para não virem a ter gémeos”(p.210); veja-se o Magusto da Velha – foi um magusto que teve a sua origem numa herança de “24 escudos e 60 centavos” que uma senhora “velha”, mas abastada, quis dar ao povo de Vila do Porco, hoje Vila Viçosa, dando-lhe a possibilidade de comer castanhas e de beber vinho um dia por ano, a troco da reza de um “Padre-Nosso” (p.236); também há muitas adivinhas – “Tenho camisa e casaco/Sem remendo nem buraco/Estoiro como um foguete/Se alguém no lume me mete” (p.183); quadras populares: ”Quem me dera cá o tempo,/O tempo das desfolhadas,/Para dar ao meu amor, Quatro castanhas assadas.”(p. 182) e muitas superstições – exemplo – “a crença de que as crianças não podiam comer o embrião das castanhas para não apanharem piolhos.”(p. 212).

Para além desta fonte castanhícola, há ainda um levantamento exaustivo de topónimos, devidamente agrupados em concelhos/freguesias e lugar/topónimo – para exemplificar: no concelho de Abrantes, na freguesia do Souto, o lugar de Casais da Ribeira do Souto – tudo isto assinalado numa cartografia do país (ver mapa 1, p. 267). O castanheiro surge ainda na heráldica, normalmente representado em brasões autárquicos.

Assim, Memórias da Maria Castanha é um livro que ensina a “saber ver” a natureza, tal como Alberto Caeiro afirmou: “Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!), / Isso exige um estudo profundo,/Uma aprendizagem do desaprender/.” Este heterónimo pessoano, que sustentava o primado da sensação sobre a razão, defendia uma harmonia do ser com a natureza, a partir do saber ver sem estar a pensar, mas a maior parte dos homens, cheios de preconceitos e convicções (trazem a alma vestida), não quer ver e, por isso, eles não serão capazes de valorizar o que a terra lhes dá. É preciso ter uma alma grande para olhar para um castanheiro e ver que ele está direcionado, na vertical, para a transcendência e a sua raiz enterrada, na horizontalidade da terra, é mãe e representa a imanência. Desta confluência, o nome “Maria” sai enriquecido e a obra contém um halo de religiosidade.

A terminar, é uma obra que precisa de ser lida para apreender toda a riqueza contida neste tesouro – herança para os vindouros.

Parabéns ao autor!

Júlia Serra, professora aposentada do Agrupamento de Escolas D. Dinis

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